terça-feira, 20 de outubro de 2009

Brasilia - Clarice Lispector

Brasília é construída na linha do horizonte. - Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado. Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem especialmente para aquele mundo. Nós somos todos deformados pela adaptação à liberdade de Deus. Não sabemos como seríamos se tivéssemos sido criados em primeiro lugar, e depois o mundo deformado às nossas necessidades. Brasília ainda não tem o homem de Brasília. - Se eu dissesse que Brasília é bonita, veriam imediatamente que gostei da cidade.

Mas se digo que Brasília é a imagem de minha insônia, vêem nisso uma acusação; mas a minha insônia não é bonita nem feia - minha insônia sou eu, é vivida, é o meu espanto. Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil; eles ergueram o espanto deles, e deixaram o espanto inexplicado. A criação não é uma compreensão, é um novo mistério. - Quando morri, um dia abri os olhos e era Brasília. Eu estava sozinha no mundo. Havia um táxi parado. Sem chofer. - Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, dois homens solitários. - Olho Brasília como olho Roma: Brasília começou com uma simplificação final de ruínas.

A hera ainda não cresceu. - Além do vento há uma outra coisa que sopra. Só se reconhece na crispação sobrenatural do lago. - Em qualquer lugar onde se está de pé, criança pode cair, e para fora do mundo. Brasília fica à beira. - Se eu morasse aqui, deixaria meus cabelos crescerem até o chão. - Brasília é de um passado esplendoroso que já não existe mais. Há milênios desapareceu esse tipo de civilização. No século IV a.C. era habitada por homens e mulheres louros e altíssimos, que não eram americanos nem suecos, e que faiscavam ao sol. Eram todos cegos. É por isso que em Brasília não há onde esbarrar. Os brasiliários vestiam-se de ouro branco. A raça se extinguiu porque nasciam poucos filhos.

Quanto mais belos os brasiliários, mais cegos e mais puros e mais faiscantes, e menos filhos. Não havia em nome de que morrer. Milênios depois foi descoberta por um bando de foragidos que em nenhum outro lugar seriam recebidos; eles nada tinham a perder. Ali acenderam fogo, armaram tendas, pouco a pouco escavando as areias que soterravam a cidade. Esses eram homens e mulheres menores e morenos, de olhos esquivos e inquietos, e que, por serem fugitivos e desesperados, tinham em nome de que viver e morrer. Eles habitaram as casas em ruínas, multiplicaram-se, constituindo uma raça muito contemplativa. - Esperei pela noite, como quem espera pelas sombras para poder se esgueirar. Quando a noite veio, precebi com horror que era inútil: onde eu estivesse, eu seria vista. O que me apavora é: vista por quem? - Foi construída sem lugar para ratos. Toda uma parte nossa, a pior, exatamente a que tem horror de ratos, essa parte não tem lugar em Brasília. Eles quiseram negar que a gente não presta. Construções com espaço calculado para as nuvens.

O inferno me entende melhor. Mas os ratos, todos muito grandes, estão invadindo. Essa é uma manchete nos jornais. - Aqui eu tenho medo. - Este grande silêncio visual que eu amo. Também a minha insônia teria criado essa paz do nunca. Também eu, como eles dois que são monges, meditaria nesse deserto. Onde não há lugar para as tentações. Mas vejo ao longe urubus sobrevoando. O que estará morrendo meu Deus? - Não chorei nenhuma vez em Brasília. Não tinha lugar. - É uma praia sem mar. - Em Brasília não há por onde entrar, nem há por onde sair. - Mamãe, está bonito ver você em pé com esse capote branco voando (É que morri, meu filho). - Uma prisão ao ar livre. De qualquer modo não haveria para onde fugir. Pois quem foge iria provavelmente para Brasília. Prenderam-me na liberdade. Mas liberdade é só o que se conquista.

Quando me dão, estão me mandando ser livre. - Todo um lado de frieza humana que eu tenho, encontro em mim aqui em Brasília, e floresce gélido, potente, força gelada da Natureza. Aqui é o lugar onde os meus crimes (não os piores, mas os que não entenderei em mim), onde os meus crimes não seriam de amor. Vou embora para os meus outros crimes, os que Deus e eu compreendemos. Mas sei que voltarei. Sou atraída aqui pelo que me assusta em mim. - Nunca vi nada igual no mundo. Mas reconheço essa cidade no mais fundo de meu sonho. O mais fundo do meu sonho é uma lucidez. - Pois como eu ia dizendo, Flash Gordon... - Se tirasse meu retrato em pé em Brasília, quando revelassem a fotografia só sairia a paisagem. - Cadê as girafas de Brasília? - Certa crispação minha, certos silêncios, fazem meu filho dizer: puxa vida, os adultos são de morte. - É urgente. Se não for povoada, ou melhor, superpovoada, uma outra coisa vai habitá-la. E se acontecer, será tarde demais: não haverá lugar para as pessoas. Elas se sentirão tacitamente expulsas. - A alma aqui não faz sombra no chão. - Nos primeiros dois dias fiquei sem fome. Tudo me parecia que ia ser comida de avião. - De noite estendi meu rosto para o silêncio. Sei que há uma hora incógnita em que o maná desce e umedece as terras de Brasília. - Por mais perto que se esteja, tudo aqui é visto de longe.

Não encontrei um modo de tocar. Mas pelo menos essa vantagem ao meu favor: antes de chegar aqui, eu já sabia como tocar de longe. Nunca me desesperei demais: de longe, eu tocava. Tive muito, e nem do que eu toquei, sabe. Mulher rica é assim. É Brasília pura. - A cidade de Brasília fica fora da cidade. - "Boys, boys, come here, will you, look who is coming on the street all dressed up in modernistic style. It ain't nobody, but..." (Aunt Hagar's Blues, Ted Lewis and His Band, com Jimmy Dorsey na clarineta) - Essa beleza assustadora, esta cidade traçada no ar. - Por enquanto não pode nascer samba em Brasília. - Brasília não me deixa ficar cansada. Persegue um pouco. Bem-disposta, bem-disposta, bem-disposta, sinto-me bem. E afinal sempre cultivei meu cansaço, como a minha mais rica passividade. - Tudo isso é hoje apenas. Só Deus sabe o que acontecerá com Brasília. É que o acaso aqui é abrupto. - Brasília é mal-assombrada. É o perfil imóvel de uma coisa. - De minha insônia olho pela janela do hotel às três horas da madrugada. Brasília é paisagem da insônia. Nunca adormece. - Aqui o ser orgânico não se deteriora. Petrifica-se. - Eu queria ver espalhadas por Brasília 500 mil águias do mais negro ônix. - Brasília é assexuada. - O primeiro instante de ver é como certo instante da embriaguez: os pés que não tocam na terra. - Como a gente respira fundo em Brasília.

Quem respira, começa a querer. E querer, é que não pode. Não tem. Será que vai ter? É que não estou vendo onde. - Não me espantaria cruzar com árabes nas ruas. Árabes antigos e mortos. - Aqui morre minha paixão. E ganho uma lucidez que me deixa grandiosa à toa. Sou fabulsa e inútil, sou de puro ouro. E quase mediúnica. - Se há algum crime que a humanidade ainda não cometeu, esse crime novo será aqui inaugurado. E tão pouco secreto, tão bem adequado ao planalto, que ninguém jamais saberá. - Aqui é o lugar onde o espaço mais se parece com o tempo. - Tenho certeza de que aqui é o meu lugar certo. Mas é que a terra me viciou demais. Tenho maus hábitos de vida. - A erosão vai desnudar Brasília até o osso. - O ar religioso que senti desde o primeiro instante, e que neguei. Esta cidade foi conseguida pela prece. Dois homens beatificados pela solidão me criaram aqui de pé, inquieta, sozinha, a esse vento. Fazem tanta falta cavalos brancos soltos em Brasília. De noite eles seriam verdes ao luar. - Eu sei o que os dois quiseram: a lentidão e o silêncio, que também é a idéia que faço da eternidade.

Os dois criaram o retrato de uma cidade eterna. - Há alguma coisa aqui que me dá medo. Quando eu descobrir o que me assusta, saberei também o que amo aqui. O medo sempre me guiou para o que eu quero; e, porque eu quero, temo. Muitas vezes foi o medo quem me tomou pela mão e me levou. O medo me leva ao perigo. E tudo o que eu amo é arriscado. - Em Brasília, estão as crateras da Lua. - A beleza de Brasília são suas estátuas invisíveis.

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