Nas noites de verão, ou todas as noites, depois do jantar, o pai abandona a mesa. Ainda com a xícara de café na mão, ele se dirige à caixa quadrada. A deusa dos raios azulados espera o toque. Para emitir som e luz, imagem e movimento. Todos se ajeitam. O lugar principal é para o pai. Ninguém conversa. Não há o que falar. O pai não traz nada da rua, do dia-a-dia, do escritório. Os filhos não perguntam, estão proibidos de interromper. A mulher mergulha na telenovela, no filme. Todos sabem que não virá visita. E se vier alguma, vai chegar antes da telenovela. Conversas esparsas durante os comerciais. A sensação é que basta estar junto. Nada mais. Silenciosa, a família contempla a caixa azulada. Os olhos excitados, cabeças inflamadas. Recebendo, recebendo. Enquanto o corpo suportar, estarão ali. Depois, tocarão o botão e a deusa descansará. Então, as pessoas vão para as camas, deitam e sonham. Com as coisas vistas. Sempre vistas através da caixa. Nunca sentidas ou vividas. Imunizadas que estão contra a própria vida.
Ignácio de Loyola Brandão
sábado, 19 de dezembro de 2009
Estilhaços
Memórias, restos, passagens. A cidade nos habita, a cidade modifica. Mapas infinitos, redesenhados. Outras imagens, que se sobrepõem às anteriores, que trepam com as posteriores, que amam as subseqüentes. Somos peças de andaime - uma a uma - confundindo os contornos e os traços. Há um deserto formado por vias expressas, monumentos brancos e ipês amarelos. A velocidade diminui a superfície de contato. Sou extrato desse cimento que modifica e empedra meus pedaços de alma.
Engarrafada, enfeitada de luzes, a cidade veste seu colar de brilhantes e rubis. A fumaça dança sobre o meu corpo costurado. Aperto um, dois, três. Há apenas uma fila muda. Os sinais alternam suas cores e alimentam os penosos pardais. Eles medem os passos, sugam o desejo e tiram fotografias. Todas essas setas confundem os meus caminhos. E encaminho as minhas dores por email. Cadê você que não responde minhas letras?
Carros parados, ônibus lotados e pés descalços. A chuva benze todas as peles secas. Da poeta marginal ao diplomata engravatado. Os urbanóides procriam expectativas, agarram ilusões e insistem em misturar água e óleo. Meus vôos exigem pousos. Não posso caminhar nesse asfalto quente. Preciso que algo me impulsione para longe do eixo.
sexta-feira, 18 de dezembro de 2009
domingo, 13 de dezembro de 2009
sexta-feira, 4 de dezembro de 2009
quarta-feira, 2 de dezembro de 2009
terça-feira, 1 de dezembro de 2009
terça-feira, 24 de novembro de 2009
sábado, 21 de novembro de 2009
É grande, mas vale a pena...se não quiser ler tudo vá somente ao que lhe interessa!
Álvaro de Campos
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ODE TRIUNFAL
6-1914
À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical -
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força -
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.
Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!
Fraternidade com todas as dinâmicas!
Promíscua fúria de ser parte-agente
Do rodar férreo e cosmopolita
Dos comboios estrénuos,
Da faina transportadora-de-cargas dos navios,
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!
Horas europeias, produtoras, entaladas
Entre maquinismos e afazeres úteis!
Grandes cidades paradas nos cafés,
Nos cafés - oásis de inutilidades ruidosas
Onde se cristalizam e se precipitam
Os rumores e os gestos do Útil
E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo!
Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares!
Novos entusiasmos de estatura do Momento!
Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às docas,
Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos!
Actividade internacional, transatlântica, Canadian-Pacific!
Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis,
Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots,
E Piccadillies e Avenues de L'Opéra que entram
Pela minh'alma dentro!
Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hô la foule!
Tudo o que passa, tudo o que pára às montras!
Comerciantes; vários; escrocs exageradamente bem-vestidos;
Membros evidentes de clubes aristocráticos;
Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente felizes
E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colete
De algibeira a algibeira!
Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!
Presença demasiadamente acentuada das cocotes
Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?)
Das burguesinhas, mãe e filha geralmente,
Que andam na rua com um fim qualquer;
A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos;
E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra
E afinal tem alma lá dentro!
(Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!)
A maravilhosa beleza das corrupções políticas,
Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,
Agressões políticas nas ruas,
E de vez em quando o cometa dum regicídio
Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus
Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana!
Notícias desmentidas dos jornais,
Artigos políticos insinceramente sinceros,
Notícias passez à-la-caisse, grandes crimes -
Duas colunas deles passando para a segunda página!
O cheiro fresco a tinta de tipografia!
Os cartazes postos há pouco, molhados!
Vients-de-paraître amarelos como uma cinta branca!
Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,
Como eu vos amo de todas as maneiras,
Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto
E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim!)
E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!
Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!
Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura!
Química agrícola, e o comércio quase uma ciência!
Ó mostruários dos caixeiros-viajantes,
Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da Indústria,
Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos escritórios!
Ó fazendas nas montras! Ó manequins! Ó últimos figurinos!
Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!
Olá grandes armazéns com várias secções!
Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem!
Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!
Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos!
Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!
Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!
Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.
Amo-vos carnivoramente.
Pervertidamente e enroscando a minha vista
Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,
Ó coisas todas modernas,
Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima
Do sistema imediato do Universo!
Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!
Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks,
Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes -
Na minha mente turbulenta e encandescida
Possuo-vos como a uma mulher bela,
Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama,
Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.
Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!
Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!
Eh-lá-hô recomposições ministeriais!
Parlamentos, políticas, relatores de orçamentos,
Orçamentos falsificados!
(Um orçamento é tão natural como uma árvore
E um parlamento tão belo como uma borboleta).
Eh-lá o interesse por tudo na vida,
Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras
Até à noite ponte misteriosa entre os astros
E o mar antigo e solene, lavando as costas
E sendo misericordiosamente o mesmo
Que era quando Platão era realmente Platão
Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro,
E falava com Aristóteles, que havia de não ser discípulo dele.
Eu podia morrer triturado por um motor
Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída.
Atirem-me para dentro das fornalhas!
Metam-me debaixo dos comboios!
Espanquem-me a bordo de navios!
Masoquismo através de maquinismos!
Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!
Up-lá hô jockey que ganhaste o Derby,
Morder entre dentes o teu cap de duas cores!
(Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma porta!
Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!)
Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais!
Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas.
E ser levado da rua cheio de sangue
Sem ninguém saber quem eu sou!
Ó tramways, funiculares, metropolitanos,
Roçai-vos por mim até ao espasmo!
Hilla! hilla! hilla-hô!
Dai-me gargalhadas em plena cara,
Ó automóveis apinhados de pândegos e de...,
Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,
Rio multicolor anónimo e onde eu me posso banhar como quereria!
Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto!
Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro,
As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam,
Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto
E os gestos que faz quando ninguém pode ver!
Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,
Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome
Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos
Em crispações absurdas em pleno meio das turbas
Nas ruas cheias de encontrões!
Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,
Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
E cujas filhas aos oito anos - e eu acho isto belo e amo-o! -
Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.
Maravilhosamente gente humana que vive como os cães
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi feita,
Nenhuma arte criada,
Nenhuma política destinada para eles!
Como eu vos amo a todos, porque sois assim,
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,
Inatingíveis por todos os progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!
(Na nora do quintal da minha casa
O burro anda à roda, anda à roda,
E o mistério do mundo é do tamanho disto.
Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente.
A luz do sol abafa o silêncio das esferas
E havemos todos de morrer,
Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,
Pinheirais onde a minha infância era outra coisa
Do que eu sou hoje...)
Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante!
Outra vez a obsessão movimentada dos ónibus.
E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios
De todas as partes do mundo,
De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios,
Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das docas.
Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado!
Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores!
Eh-lá grandes desastres de comboios!
Eh-lá desabamentos de galerias de minas!
Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos!
Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,
Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões,
Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim,
A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,
E outro Sol no novo Horizonte!
Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto
Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,
O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,
O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,
O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.
Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,
Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos,
Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,
Engenhos brocas, máquinas rotativas!
Eia! eia! eia!
Eia electricidade, nervos doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo o passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
Eia! eia! eia!
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!
Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de todos os navios.
Eia! eia-hô! eia!
Eia! sou o calor mecânico e a electricidade!
Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa!
Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!
Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!
Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!
Hé-la! He-hô! H-o-o-o-o!
Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!
Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!
Londres, 1914 - Junho.
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ODE TRIUNFAL
6-1914
À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical -
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força -
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.
Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!
Fraternidade com todas as dinâmicas!
Promíscua fúria de ser parte-agente
Do rodar férreo e cosmopolita
Dos comboios estrénuos,
Da faina transportadora-de-cargas dos navios,
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!
Horas europeias, produtoras, entaladas
Entre maquinismos e afazeres úteis!
Grandes cidades paradas nos cafés,
Nos cafés - oásis de inutilidades ruidosas
Onde se cristalizam e se precipitam
Os rumores e os gestos do Útil
E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo!
Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares!
Novos entusiasmos de estatura do Momento!
Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às docas,
Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos!
Actividade internacional, transatlântica, Canadian-Pacific!
Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis,
Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots,
E Piccadillies e Avenues de L'Opéra que entram
Pela minh'alma dentro!
Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hô la foule!
Tudo o que passa, tudo o que pára às montras!
Comerciantes; vários; escrocs exageradamente bem-vestidos;
Membros evidentes de clubes aristocráticos;
Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente felizes
E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colete
De algibeira a algibeira!
Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!
Presença demasiadamente acentuada das cocotes
Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?)
Das burguesinhas, mãe e filha geralmente,
Que andam na rua com um fim qualquer;
A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos;
E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra
E afinal tem alma lá dentro!
(Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!)
A maravilhosa beleza das corrupções políticas,
Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,
Agressões políticas nas ruas,
E de vez em quando o cometa dum regicídio
Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus
Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana!
Notícias desmentidas dos jornais,
Artigos políticos insinceramente sinceros,
Notícias passez à-la-caisse, grandes crimes -
Duas colunas deles passando para a segunda página!
O cheiro fresco a tinta de tipografia!
Os cartazes postos há pouco, molhados!
Vients-de-paraître amarelos como uma cinta branca!
Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,
Como eu vos amo de todas as maneiras,
Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto
E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim!)
E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!
Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!
Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura!
Química agrícola, e o comércio quase uma ciência!
Ó mostruários dos caixeiros-viajantes,
Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da Indústria,
Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos escritórios!
Ó fazendas nas montras! Ó manequins! Ó últimos figurinos!
Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!
Olá grandes armazéns com várias secções!
Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem!
Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!
Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos!
Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!
Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!
Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.
Amo-vos carnivoramente.
Pervertidamente e enroscando a minha vista
Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,
Ó coisas todas modernas,
Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima
Do sistema imediato do Universo!
Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!
Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks,
Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes -
Na minha mente turbulenta e encandescida
Possuo-vos como a uma mulher bela,
Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama,
Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.
Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!
Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!
Eh-lá-hô recomposições ministeriais!
Parlamentos, políticas, relatores de orçamentos,
Orçamentos falsificados!
(Um orçamento é tão natural como uma árvore
E um parlamento tão belo como uma borboleta).
Eh-lá o interesse por tudo na vida,
Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras
Até à noite ponte misteriosa entre os astros
E o mar antigo e solene, lavando as costas
E sendo misericordiosamente o mesmo
Que era quando Platão era realmente Platão
Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro,
E falava com Aristóteles, que havia de não ser discípulo dele.
Eu podia morrer triturado por um motor
Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída.
Atirem-me para dentro das fornalhas!
Metam-me debaixo dos comboios!
Espanquem-me a bordo de navios!
Masoquismo através de maquinismos!
Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!
Up-lá hô jockey que ganhaste o Derby,
Morder entre dentes o teu cap de duas cores!
(Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma porta!
Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!)
Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais!
Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas.
E ser levado da rua cheio de sangue
Sem ninguém saber quem eu sou!
Ó tramways, funiculares, metropolitanos,
Roçai-vos por mim até ao espasmo!
Hilla! hilla! hilla-hô!
Dai-me gargalhadas em plena cara,
Ó automóveis apinhados de pândegos e de...,
Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,
Rio multicolor anónimo e onde eu me posso banhar como quereria!
Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto!
Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro,
As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam,
Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto
E os gestos que faz quando ninguém pode ver!
Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,
Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome
Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos
Em crispações absurdas em pleno meio das turbas
Nas ruas cheias de encontrões!
Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,
Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
E cujas filhas aos oito anos - e eu acho isto belo e amo-o! -
Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.
Maravilhosamente gente humana que vive como os cães
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi feita,
Nenhuma arte criada,
Nenhuma política destinada para eles!
Como eu vos amo a todos, porque sois assim,
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,
Inatingíveis por todos os progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!
(Na nora do quintal da minha casa
O burro anda à roda, anda à roda,
E o mistério do mundo é do tamanho disto.
Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente.
A luz do sol abafa o silêncio das esferas
E havemos todos de morrer,
Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,
Pinheirais onde a minha infância era outra coisa
Do que eu sou hoje...)
Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante!
Outra vez a obsessão movimentada dos ónibus.
E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios
De todas as partes do mundo,
De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios,
Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das docas.
Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado!
Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores!
Eh-lá grandes desastres de comboios!
Eh-lá desabamentos de galerias de minas!
Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos!
Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,
Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões,
Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim,
A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,
E outro Sol no novo Horizonte!
Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto
Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,
O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,
O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,
O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.
Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,
Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos,
Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,
Engenhos brocas, máquinas rotativas!
Eia! eia! eia!
Eia electricidade, nervos doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo o passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
Eia! eia! eia!
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!
Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de todos os navios.
Eia! eia-hô! eia!
Eia! sou o calor mecânico e a electricidade!
Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa!
Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!
Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!
Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!
Hé-la! He-hô! H-o-o-o-o!
Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!
Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!
Londres, 1914 - Junho.
segunda-feira, 16 de novembro de 2009
sexta-feira, 13 de novembro de 2009
domingo, 25 de outubro de 2009
Quadrinistas emergentes da cidade.
http://revistasamba.blogspot.com/
http://nemumnemoutrosite.wordpress.com/
http://nemumnemoutrosite.wordpress.com/
sexta-feira, 23 de outubro de 2009
Nicolas Behr
Nos anos 70 um poeta.
Hoje, um botanico tentando reviver os seus anos de glória marginal.
Ou não.
eu engoli Brasília.
em paz
com a cidade
meu Fusca vai
por esses eixos,
balões e quadras,
burocraticamente,
carimbando
o asfalto
e enviando ofícios
de estima
e consideração
ao Sr. Diretor.
Beijo de Hiena
nem tudo que é torto
é errado
veja as pernas do garrincha
e as árvores do cerrado
Segredo Secreto
FADIGA NEURÓTICA
minha memória futura
tem vagas lembranças
da tua peste emocional
- jamais te tocarei
jesus te ama
eu não
Saída de Emergência
subo aos céus
pelas escadas rolantes
da rodoviária de brasília
o corpo de cristo
aqui não é pão
é pastel de carne
o sangue de cristo
não é vinho
é caldo de cana
o pdroeiro desta cidade
é S. João Bosco ou Padim Ciço?
Entre Quadras
SQS415F303
SQN303F415
NQS403F315
QQQ313F405
SSS305F413
seria isso
um poema
sobre brasília?
seria um poema?
seria brasília
L2 Noves Fora W3
naquela noite ela estava
mais dabelhutrês
do que nunca
toda eixosa
cheia de L2
vai ser superquadra
assim lá em casa
pra suzana
Grande Circular
como anda o humor
em brasília?
aqui o humor
anda de chapa branca
Caroço de Goiaba
RECEITA
Ingredientes:
2 conflitos de gerações
4 esperanças perdidas
3 litros de sangue fervido
5 sonhos eróticos
2 canções dos beatles
Modo de preparar
dissolva os sonhos eróticos
nos dois litros de sangue fervido
e deixe gelar seu coração
leve a mistura ao fogo
adicionando dois conflitos de gerações
às esperanças perdidas
corte tudo em pedacinhos
e repita com as canções dos beatles
o mesmo processo usado com os sonhos
eróticos mas desta vez deixe ferver um
pouco mais e mexa até dissolver
parte do sangue pode ser substituido
por suco de groselha
mas os resultados não serão os mesmos
sirva o poema simples ou com ilusões
·
se é para o bem de todos
e felicidade geral da nação
diga ao povo
que direitos, direitos,
humanos à parte
Hoje, um botanico tentando reviver os seus anos de glória marginal.
Ou não.
eu engoli Brasília.
em paz
com a cidade
meu Fusca vai
por esses eixos,
balões e quadras,
burocraticamente,
carimbando
o asfalto
e enviando ofícios
de estima
e consideração
ao Sr. Diretor.
Beijo de Hiena
nem tudo que é torto
é errado
veja as pernas do garrincha
e as árvores do cerrado
Segredo Secreto
FADIGA NEURÓTICA
minha memória futura
tem vagas lembranças
da tua peste emocional
- jamais te tocarei
jesus te ama
eu não
Saída de Emergência
subo aos céus
pelas escadas rolantes
da rodoviária de brasília
o corpo de cristo
aqui não é pão
é pastel de carne
o sangue de cristo
não é vinho
é caldo de cana
o pdroeiro desta cidade
é S. João Bosco ou Padim Ciço?
Entre Quadras
SQS415F303
SQN303F415
NQS403F315
QQQ313F405
SSS305F413
seria isso
um poema
sobre brasília?
seria um poema?
seria brasília
L2 Noves Fora W3
naquela noite ela estava
mais dabelhutrês
do que nunca
toda eixosa
cheia de L2
vai ser superquadra
assim lá em casa
pra suzana
Grande Circular
como anda o humor
em brasília?
aqui o humor
anda de chapa branca
Caroço de Goiaba
RECEITA
Ingredientes:
2 conflitos de gerações
4 esperanças perdidas
3 litros de sangue fervido
5 sonhos eróticos
2 canções dos beatles
Modo de preparar
dissolva os sonhos eróticos
nos dois litros de sangue fervido
e deixe gelar seu coração
leve a mistura ao fogo
adicionando dois conflitos de gerações
às esperanças perdidas
corte tudo em pedacinhos
e repita com as canções dos beatles
o mesmo processo usado com os sonhos
eróticos mas desta vez deixe ferver um
pouco mais e mexa até dissolver
parte do sangue pode ser substituido
por suco de groselha
mas os resultados não serão os mesmos
sirva o poema simples ou com ilusões
·
se é para o bem de todos
e felicidade geral da nação
diga ao povo
que direitos, direitos,
humanos à parte
quinta-feira, 22 de outubro de 2009
A Catedral Rosa
"Catedral Rosa" foi uma intervenção urbana idealizada pelos artistas Fábio Baroli e Susanna Aune. Realizada com a ajuda de um grupo de pessoas, a intervenção se consistiu em modificar a iluminação da Catedral de Brasília através de interferências realizadas diretamente nos refletores do monumento.
A premissa ganhou vida no fato de pintar literalmente sua grande coroa branca com a cor rosa no dia 28 de junho (dia do orgulho gay), quarta-feira, aproximadamente às 18:40h. Foi um trabalho que buscou alcançar questionamentos sobre os paradigmas histórico-social, apontando a igreja como a grande ditadora de nortes morais; e artístico-cultural, onde a assepsia do branco é um gen dominante na estética niemeyeriana.
O feitio translúcido que tanto sugere como se afirma característico desta intervenção, tem como fator principal bulir com as questões morais, éticas, estéticas, históricas, sociais e culturais de maneira sutil e poética sem danificar a estrutura física do monumento.
Participaram da intervenção os artistas João Angelini, Camila Soato, Luciana Paiva, Matias Monteiro, Raquel Nava, Stanley Altoé e Wanderson; e os amigos Bebel, Bel, Eduardo Alves, Élisson Prado e Heber.
_______________________________________
Créditos:
Idealização: Fábio Baroli e Susanna Aune
Realização: Bebel, Bel, Camila Soato, Eduardo Alves, Élisson Prado, Fábio Baroli, Heber, Raquel Nava, Stanley Altoé e Susanna Aune
Filmagem local: João Angelini
Filmagem panorâmica: Luciana Paiva e Matias Monteiro
Fotografia: Wanderson
O Theremin
O teremim é um dos primeiros instrumentos musicais completamente eletrônicos. Inventado em 1919 pelo russo Lev Sergeivitch Termen (conhecido também pela forma francesa do nome: Léon Theremin), o teremim é único por não precisar de nenhum contato físico para produzir música e foi, de fato, o primeiro instrumento musical projetado para ser tocado sem precisar de contato, pois é executado movimentando-se as mãos no ar. Apresentado pelo próprio inventor em 1920, o instrumento opera através do princípio da produção de efeito heteródino em dois osciladores de frequência radiofônicos e consiste de caixa com duas antenas externas, uma que controla a altura, e outra, o volume, ao redor das quais o músico movimenta suas mãos para produzir som.
quarta-feira, 21 de outubro de 2009
VELOCIDADE?!
A nation's tear reflects its tear and separation.
Ambiguous relations between republics breed hatred.
A country's cry for solidarity goes disregarded, while ruling nationalist chauvinism turns state against state.
Soured by arrogance, once brothers with brothers, turned statesman vs. statesman in an authoritarian race for expansion.
Tears reflect tears and separation.
Soured by arrogance, once brothers turned state to state to state.
State to hate to...
Repara nos shows dessa banda, sao so' dois caras tocando.
terça-feira, 20 de outubro de 2009
Medo - Carlos Drummond de Andrade
Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.
E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
vadeamos.
Somos apenas uns homens
e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas,
Doenças galopantes, fomes.
Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
e o amor faltou: chovia,
ventava, fazia frio em São Paulo.
Fazia frio em São Paulo…
Nevava.
O medo, com sua capa,
nos dissimula e nos berça.
Fiquei com medo de ti,
meu companheiro moreno,
De nós, de vós: e de tudo.
Estou com medo da honra.
Assim nos criam burgueses,
Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos?
Vem, harmonia do medo,
vem, ó terror das estradas,
susto na noite, receio
de águas poluídas. Muletas
do homem só. Ajudai-nos,
lentos poderes do láudano.
Até a canção medrosa
se parte, se transe e cala-se.
Faremos casas de medo,
duros tijolos de medo,
medrosos caules, repuxos,
ruas só de medo e calma.
E com asas de prudência,
com resplendores covardes,
atingiremos o cimo
de nossa cauta subida.
O medo, com sua física,
tanto produz: carcereiros,
edifícios, escritores,
este poema; outras vidas.
Tenhamos o maior pavor,
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.
Adeus: vamos para a frente,
recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes…
Fiéis herdeiros do medo,
eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.
E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
vadeamos.
Somos apenas uns homens
e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas,
Doenças galopantes, fomes.
Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
e o amor faltou: chovia,
ventava, fazia frio em São Paulo.
Fazia frio em São Paulo…
Nevava.
O medo, com sua capa,
nos dissimula e nos berça.
Fiquei com medo de ti,
meu companheiro moreno,
De nós, de vós: e de tudo.
Estou com medo da honra.
Assim nos criam burgueses,
Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos?
Vem, harmonia do medo,
vem, ó terror das estradas,
susto na noite, receio
de águas poluídas. Muletas
do homem só. Ajudai-nos,
lentos poderes do láudano.
Até a canção medrosa
se parte, se transe e cala-se.
Faremos casas de medo,
duros tijolos de medo,
medrosos caules, repuxos,
ruas só de medo e calma.
E com asas de prudência,
com resplendores covardes,
atingiremos o cimo
de nossa cauta subida.
O medo, com sua física,
tanto produz: carcereiros,
edifícios, escritores,
este poema; outras vidas.
Tenhamos o maior pavor,
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.
Adeus: vamos para a frente,
recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes…
Fiéis herdeiros do medo,
eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo
Brasilia - Clarice Lispector
Brasília é construída na linha do horizonte. - Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado. Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem especialmente para aquele mundo. Nós somos todos deformados pela adaptação à liberdade de Deus. Não sabemos como seríamos se tivéssemos sido criados em primeiro lugar, e depois o mundo deformado às nossas necessidades. Brasília ainda não tem o homem de Brasília. - Se eu dissesse que Brasília é bonita, veriam imediatamente que gostei da cidade.
Mas se digo que Brasília é a imagem de minha insônia, vêem nisso uma acusação; mas a minha insônia não é bonita nem feia - minha insônia sou eu, é vivida, é o meu espanto. Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil; eles ergueram o espanto deles, e deixaram o espanto inexplicado. A criação não é uma compreensão, é um novo mistério. - Quando morri, um dia abri os olhos e era Brasília. Eu estava sozinha no mundo. Havia um táxi parado. Sem chofer. - Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, dois homens solitários. - Olho Brasília como olho Roma: Brasília começou com uma simplificação final de ruínas.
A hera ainda não cresceu. - Além do vento há uma outra coisa que sopra. Só se reconhece na crispação sobrenatural do lago. - Em qualquer lugar onde se está de pé, criança pode cair, e para fora do mundo. Brasília fica à beira. - Se eu morasse aqui, deixaria meus cabelos crescerem até o chão. - Brasília é de um passado esplendoroso que já não existe mais. Há milênios desapareceu esse tipo de civilização. No século IV a.C. era habitada por homens e mulheres louros e altíssimos, que não eram americanos nem suecos, e que faiscavam ao sol. Eram todos cegos. É por isso que em Brasília não há onde esbarrar. Os brasiliários vestiam-se de ouro branco. A raça se extinguiu porque nasciam poucos filhos.
Quanto mais belos os brasiliários, mais cegos e mais puros e mais faiscantes, e menos filhos. Não havia em nome de que morrer. Milênios depois foi descoberta por um bando de foragidos que em nenhum outro lugar seriam recebidos; eles nada tinham a perder. Ali acenderam fogo, armaram tendas, pouco a pouco escavando as areias que soterravam a cidade. Esses eram homens e mulheres menores e morenos, de olhos esquivos e inquietos, e que, por serem fugitivos e desesperados, tinham em nome de que viver e morrer. Eles habitaram as casas em ruínas, multiplicaram-se, constituindo uma raça muito contemplativa. - Esperei pela noite, como quem espera pelas sombras para poder se esgueirar. Quando a noite veio, precebi com horror que era inútil: onde eu estivesse, eu seria vista. O que me apavora é: vista por quem? - Foi construída sem lugar para ratos. Toda uma parte nossa, a pior, exatamente a que tem horror de ratos, essa parte não tem lugar em Brasília. Eles quiseram negar que a gente não presta. Construções com espaço calculado para as nuvens.
O inferno me entende melhor. Mas os ratos, todos muito grandes, estão invadindo. Essa é uma manchete nos jornais. - Aqui eu tenho medo. - Este grande silêncio visual que eu amo. Também a minha insônia teria criado essa paz do nunca. Também eu, como eles dois que são monges, meditaria nesse deserto. Onde não há lugar para as tentações. Mas vejo ao longe urubus sobrevoando. O que estará morrendo meu Deus? - Não chorei nenhuma vez em Brasília. Não tinha lugar. - É uma praia sem mar. - Em Brasília não há por onde entrar, nem há por onde sair. - Mamãe, está bonito ver você em pé com esse capote branco voando (É que morri, meu filho). - Uma prisão ao ar livre. De qualquer modo não haveria para onde fugir. Pois quem foge iria provavelmente para Brasília. Prenderam-me na liberdade. Mas liberdade é só o que se conquista.
Quando me dão, estão me mandando ser livre. - Todo um lado de frieza humana que eu tenho, encontro em mim aqui em Brasília, e floresce gélido, potente, força gelada da Natureza. Aqui é o lugar onde os meus crimes (não os piores, mas os que não entenderei em mim), onde os meus crimes não seriam de amor. Vou embora para os meus outros crimes, os que Deus e eu compreendemos. Mas sei que voltarei. Sou atraída aqui pelo que me assusta em mim. - Nunca vi nada igual no mundo. Mas reconheço essa cidade no mais fundo de meu sonho. O mais fundo do meu sonho é uma lucidez. - Pois como eu ia dizendo, Flash Gordon... - Se tirasse meu retrato em pé em Brasília, quando revelassem a fotografia só sairia a paisagem. - Cadê as girafas de Brasília? - Certa crispação minha, certos silêncios, fazem meu filho dizer: puxa vida, os adultos são de morte. - É urgente. Se não for povoada, ou melhor, superpovoada, uma outra coisa vai habitá-la. E se acontecer, será tarde demais: não haverá lugar para as pessoas. Elas se sentirão tacitamente expulsas. - A alma aqui não faz sombra no chão. - Nos primeiros dois dias fiquei sem fome. Tudo me parecia que ia ser comida de avião. - De noite estendi meu rosto para o silêncio. Sei que há uma hora incógnita em que o maná desce e umedece as terras de Brasília. - Por mais perto que se esteja, tudo aqui é visto de longe.
Não encontrei um modo de tocar. Mas pelo menos essa vantagem ao meu favor: antes de chegar aqui, eu já sabia como tocar de longe. Nunca me desesperei demais: de longe, eu tocava. Tive muito, e nem do que eu toquei, sabe. Mulher rica é assim. É Brasília pura. - A cidade de Brasília fica fora da cidade. - "Boys, boys, come here, will you, look who is coming on the street all dressed up in modernistic style. It ain't nobody, but..." (Aunt Hagar's Blues, Ted Lewis and His Band, com Jimmy Dorsey na clarineta) - Essa beleza assustadora, esta cidade traçada no ar. - Por enquanto não pode nascer samba em Brasília. - Brasília não me deixa ficar cansada. Persegue um pouco. Bem-disposta, bem-disposta, bem-disposta, sinto-me bem. E afinal sempre cultivei meu cansaço, como a minha mais rica passividade. - Tudo isso é hoje apenas. Só Deus sabe o que acontecerá com Brasília. É que o acaso aqui é abrupto. - Brasília é mal-assombrada. É o perfil imóvel de uma coisa. - De minha insônia olho pela janela do hotel às três horas da madrugada. Brasília é paisagem da insônia. Nunca adormece. - Aqui o ser orgânico não se deteriora. Petrifica-se. - Eu queria ver espalhadas por Brasília 500 mil águias do mais negro ônix. - Brasília é assexuada. - O primeiro instante de ver é como certo instante da embriaguez: os pés que não tocam na terra. - Como a gente respira fundo em Brasília.
Quem respira, começa a querer. E querer, é que não pode. Não tem. Será que vai ter? É que não estou vendo onde. - Não me espantaria cruzar com árabes nas ruas. Árabes antigos e mortos. - Aqui morre minha paixão. E ganho uma lucidez que me deixa grandiosa à toa. Sou fabulsa e inútil, sou de puro ouro. E quase mediúnica. - Se há algum crime que a humanidade ainda não cometeu, esse crime novo será aqui inaugurado. E tão pouco secreto, tão bem adequado ao planalto, que ninguém jamais saberá. - Aqui é o lugar onde o espaço mais se parece com o tempo. - Tenho certeza de que aqui é o meu lugar certo. Mas é que a terra me viciou demais. Tenho maus hábitos de vida. - A erosão vai desnudar Brasília até o osso. - O ar religioso que senti desde o primeiro instante, e que neguei. Esta cidade foi conseguida pela prece. Dois homens beatificados pela solidão me criaram aqui de pé, inquieta, sozinha, a esse vento. Fazem tanta falta cavalos brancos soltos em Brasília. De noite eles seriam verdes ao luar. - Eu sei o que os dois quiseram: a lentidão e o silêncio, que também é a idéia que faço da eternidade.
Os dois criaram o retrato de uma cidade eterna. - Há alguma coisa aqui que me dá medo. Quando eu descobrir o que me assusta, saberei também o que amo aqui. O medo sempre me guiou para o que eu quero; e, porque eu quero, temo. Muitas vezes foi o medo quem me tomou pela mão e me levou. O medo me leva ao perigo. E tudo o que eu amo é arriscado. - Em Brasília, estão as crateras da Lua. - A beleza de Brasília são suas estátuas invisíveis.
segunda-feira, 19 de outubro de 2009
domingo, 11 de outubro de 2009
quarta-feira, 7 de outubro de 2009
Anotações sobre uma amor urbano
"Corre, corre. O número do telefone dissolvendo-se em tinta na palma da mão suada. Ah, no fim destes dias crispados de início de primavera, entre os engarrafamentos de trânsito, as pessoa enlouquecidas e a paranóia à solta pela cidade, no fim desses dias encontrar você que me sorri, que me abre os braços, que me abençoa, e passa a mão na minha cara marcada, no que resta de cabelos na minha cabeça confusa, que me olha no olho e me permite mergulhar no fundo quente da curva do teu olho. Mergulho no cheiro que não defino, você me embala dentro dos seus braços, você cobre com a boca meus ouvidos entupidos de buzinas, versos interrompidos, escapamentos abertos, tilintar de telefones, máquinas de escrever, ruídos eletrônicos, britadeiras de concreto, e você me beija e você me aperta, e você me leva para Creta Mikonos, Rodes, Patmos, Delos, e você me aquieta repetindo que está tudo bem, tudo, tudo bem. O telefone toca três vezes. Isto é uma gravação deixe seu nome e telefone depois do bip que eu ligo assim que puder, ok?
a
O cheiro do teu corpo persiste no meu durante dias. Não tomo banho. Guardo, preservo, cheiro o cheiro do teu cheiro grudado no meu. E basta fechar os olhos pra naufragar outra vez e cada vez mais fundo na tua boca. Abismos marinhos, sargaços. Minhas mãos escorrem pelo teu peito, gramados batidos de Sol, poços claros. Alguma coisa então pára, as coisas param. Os automóveis nas ruas, os relógios nas paredes, as pessoas nas casas, as estrelas que não conseguimos ver aqui no fundo da cidade escura. Olho no poço do teu olho escuro, meia noite em ponto. Quero fazer um feitiço pra que nada mais volte a andar. Quero ficar assim, no parado. Sei com medo que o que trouxe você aqui foi esse me jeito de ir vivendo como quem pula poças de lama, sem cair nelas, mas sei que agora esse jeito se despedaça. Torre fulminada, o inabalável vacila quando começa a brotar de mim isso que não esta completo sem o outro. Você assopra na minha testa. Sou só poeira, me espalho em grãs invisíveis pelos quatro cantos do quarto.
a
(...) Fico tosco e você se assusta com minha boca faminta voraz desdentada de moleque mendigo pedindo esmola neste cruzamento aonde viemos dar.
a
A cidade está louca, você sabe. A cidade está doente, você sabe. A cidade está podre, você sabe. Como gostar limpo de você no meio desse doente podre louco? Urbanóides cortam sempre meu caminho à procura de cigarros, fósforos, sexo, dinheiro, palavras e necessidades obscuras, que não chego a decifrar em seus olhos semafóricos. Tenho pressa, não podemos perder tempo. Como chamar agora a essa meia dúzia de toques aterrorizados pela possibilidade da peste? (Amor, amor certamente não). Como evitaremos que nosso encontro se decomponha, corrompa e apodreça junto com o louco, o doente, o podre? Não evitaremos. Pois a cidade está podre, você sabe. Mas a cidade esta louca, você sabe. Sim a cidade está doente, você sabe. E o vírus caminha em nossas, companheiro. "
Caio Fernando Abreu
São trechos do conto. Vale a pena ler inteiro. Para isso, clique aqui.
quinta-feira, 1 de outubro de 2009
TERRORISMO POÉTICO
- Dançar bizarramente a noite inteira em caixas eletrônicos de bancos. Apresentações pirotécnicas não autorizadas. Land-art*, peças de argila que sugerem estranhos artefatos alienígenas espalhados em parques estaduais. Arrombe apartamentos, mas, em vez de roubar, deixe objetos Poético-terroristas. Seqüestre alguém & o faça feliz. Escolha alguém ao acaso & o convença de que é herdeiro de uma enorme, inútil e impressionante fortuna - digamos, cinco mil quilômetros quadrados na Antártica, um velho elefante de circo, um orfanato em Bombaim ou uma coleção de manuscritos de alquimia. Mais tarde, essa pessoa perceberá que por alguns momentos acreditou em algo extraordinário & talvez se sinta motivada a procurar um modo mais interessante de existência.
- Coloque placas de bronze comemorativas nos lugares (públicos ou privados) onde você teve uma revelação ou viveu uma experiência sexual particularmente inesquecível etc.
- Fique nu para simbolizar algo.
- Organize uma greve na escola ou trabalho em protesto por eles não satisfazerem a sua necessidade de indolência & beleza espiritual.
- A arte do grafite emprestou alguma graça aos horríveis vagões de metrô & sóbrios monumentos públicos - a arte - TP também pode ser criada para lugares públicos: poemas rabiscados nos lavabos dos tribunais, pequenos fetiches abandonados em parques & restaurantes, arte-xerox sob o limpador de pára-brisas de carros estacionados, slogans escritos com letras gigantes nas paredes de playgrounds, cartas anônimas enviadas a destinatários previamente eleitos ou escolhidos ao acaso (fraude postal), transmissões de rádio pirata, cimento fresco...
- A reação do público ou o choque-estético produzido pelo TP tem que ser uma emoção pelo menos tão forte quanto o terror - profunda repugnância, tesão sexual, temor supersticioso, súbitas revelações intuitivas, angústia dadaísta - não importa se o TP é dirigido a apenas uma pessoa ou várias pessoas, se é "assinado" ou anônimo: se não mudar a vida de alguém (além da do artista), ele falhou.
- O TP é um ato num Teatro da Crueldade sem palco, sem fileiras de poltronas, sem ingressos ou paredes. Para que funcione, o TP deve afastar-se de forma categórica de todas as estruturas tradicionais para o consumo de arte (galerias, publicações, mídia). Mesmo as táticas de guerrilha Situacionista do teatro de rua talvez tenham agora se tornado muito conhecidas & previsíveis.
- Uma requintada sedução levada adiante não apenas pela satisfação mútua, mas também como um ato consciente por uma vida deliberadamente mais bela - deve ser o TP definitivo. O Terrorista Poético comporta-se como um trapaceiro barato cuja meta não é dinheiro, mas MUDANÇA.
- Não faça TP para outros artistas, faça-o para pessoas que não perceberão (pelo menos por alguns momentos) que o que você fez é arte. Evite categorias artísticas reconhecíveis, evite a política, não fique por perto para discutir, não seja sentimental; seja impiedoso, corra riscos, vandalize apenas o que precisa ser desfigurado, faça algo que as crianças lembrarão pelo resto da vida — mas só seja espontâneo quando a Musa do TP o tenha possuído.
- Fantasie-se. Deixe um nome falso. Seja lendário. O melhor TP é contra a lei, mas não seja pego. Arte como crime; crime como arte.
Hakim Bey
Hakim Bey, pseudônimo de Peter Lamborn Wilson (Nova Iorque, 1945), é um escritor, ensaísta e poeta que se intitula como um anarquista ontológico. Seu livro T.A.Z.: Zona Autônoma Temporária escrito em 1985 foi amplamente reconhecido no mundo todo. Nele, a partir de estudos históricos sobre as utopias piratas, descreve táticas de criação de espaços temporários que passam despercebidos pelas formas tradicionais de controle.
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